Nas primeiras reuniões que fizemos para estudar os assuntos institucionais e de segurança pública, um dos problemas levantados por Oficiais presentes foi justamente o critério de promoções no âmbito de nossa Corporação. Os Oficiais em início de carreira estavam desmotivados pó falta de uma perspectiva de futuro e incertezas quanto ao crescimento profissional. Os que se encontravam na posição intermediária ficavam frustrados porque viam suas possibilidades de acesso cerceadas e aqueles quase em final de vida profissional sentindo-se como objetos de uso de interesses políticos onde o relacionamento pessoal e de afinidade suplantaram todos os critérios de avaliação profissional.
Pensei em aproveitar este espaço que o Clube dos Oficiais oferece para comentar o assunto mas, preferi sublimar a idéia para não criar constrangimento a companheiros a quem dedico especial consideração. No entanto, recebi há alguns dias uma mensagem de e-mail passando um trabalho sobre o Atual sistema de Promoção na Polícia Militar. A princípio julguei que o autor é um Oficial moderno, com quem não tive oportunidade de conviver em meu tempo de serviço ativo, mas no decorrer da leitura verifiquei tratar-se de um Oficial de uma PM de outro Estado.
Como trata-se de um assunto que diz respeito a nossa instituição e creio que os reclamos daquela corporação são os mesmos que aqui ocorrem transcrevo o texto que foi publicado. Minha preocupação é que os nossos governantes parecem ter encontrado um caminho para minar os alicerces das Polícias Militares – os fundamentos da hierarquia e disciplina. Assim, torna-se mas fácil manobrar essa instituição centenária como objeto de uso político. A instituição de estado passa a ser instituição de governo, e como dizia a ex-ministra Zélia Cardoso “o povo é um detalhe”.
Leia o trabalho e tire as suas conclusões:
O ATUAL SISTEMA DE PROMOÇÃO NA POLÍCIA MILITAR E OS SEUS
MALEFÍCIOS PARA A INSTITUIÇÃO, SEUS INTEGRANTES E A SOCIEDADE.
José Wilson Gomes de Assis1
“Pois que aproveitaria ao homem
ganhar todo o mundo e perder a
sua alma?” EVANGELHO DE SÃO
MARCOS. 8.36.
Inicialmente, faz-se necessário informar que o presente artigo não tem o objetivo de ofender a quem quer que seja e nem tampouco expor, de forma irresponsável, a amada Instituição a que pertenço. Porém, na condição de oficial, vejo-me obrigado a cumprir o dever legal (e moral) de zelar pelo bom nome da Polícia Militar, conforme me impõe o art. 28, XIX, do Estatuto dos Policiais Militares do Estado do Piauí2.
Assim, este artigo pretende constituir-se em um libelo contra o atual sistema de promoção3 na Polícia Militar e, de igual forma, num indispensável registro histórico, para que nunca nos esqueçamos de tudo de imoral e ruim que esse sistema produziu e, principalmente, evitar que no futuro atitudes tão deploráveis se repitam.
1 Capitão da Polícia Militar do Piauí. Bacharel em Ciências de Defesa Social pelo Instituto de
Ensino de Segurança do Pará – IESP. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí
– UESPI.
2 Lei nº 3.808, de 16 de julho de 1981.
3 Para melhor entendimento por parte do leitor não afeto ao assunto, a ascensão hierárquica na
Polícia Militar e nas demais instituições militares brasileiras ocorre basicamente de duas
maneiras: a primeira é pelo critério de antiguidade, onde a promoção ocorre em virtude do
tempo de serviço no posto ou na graduação; algo semelhante a uma fila de espera, onde os
que estão a mais tempo na fila serão promovidos primeiro. A segunda forma é através do
critério de merecimento, de cunho subjetivo, baseado no conjunto de qualidades e atributos
pessoais do militar que revelam, em tese, que ele é o mais apto para exercer as funções do
posto ou graduação para o qual está concorrendo. Aqui, de forma subjetiva, a promoção se dá
através de indicação.
Nos últimos anos, observamos boquiabertos a desenfreada queda da
ética dentro da Polícia Militar e a consolidação de uma “nova ética4” no seio da
milícia piauiense, especialmente junto ao oficialato.
Essa “nova ética” traduz-se na ânsia louca de se beneficiar, a
qualquer custo, de tudo aquilo que possa ser abocanhado no mais curto
espaço de tempo. Para tanto, vale-se da proximidade do poder para alterar leis,
decretos, normas ou tudo mais que possa atrapalhar seus intentos. A essa
ânsia não se encontram limites, pois, literalmente, os fins justificam os meios.
Aqui, lança-se à lama todo o valor moral que se poderia esperar de um oficial,
de qualquer policial militar ou mesmo do cidadão comum, uma vez que se
espera que todos tenham, ao menos, uma noção básica do que é certo ou
errado.
Não se vê mais honra, respeito ou ética. O sagrado templo dos
valores militares, onde deveria se cultivar a “religião da honra”, hoje se
assemelha mais a um mercado no qual a honra (ou o que restou dela) é
vendida para qualquer um que possa lhe garantir vantagens e uma ascensão
meteórica na carreira.
É com imensa vergonha que me vejo obrigado a relatar que hoje
cada político, se assim o quiser, terá (e a maioria tem) o seu oficial de
estimação5, cujo manual, para mantê-lo dócil e obediente, contém apenas duas
lacônicas recomendações: ofereça-lhe uma parca gratificação e,
principalmente, uma mera expectativa de promoção.
Todavia, a culpa não deve recair exclusivamente sobre os maus
políticos, pois embora haja a cooptação de parte do oficialato pelos detentores
do poder, há de igual forma, oficiais que utilizam essa proximidade para tirar
todos os proveitos possíveis dessa simbiose imoral6. É lamentável verificar que
4 Expressão eufêmica utilizada para designar a total ausência de ética.
5 Embora neste artigo dê-se maior ênfase ao oficialato, as considerações aqui abordadas
também se aplicam, mutatis mutandis, às nossas praças. Levando-nos à infeliz constatação de
que, de alto a baixo, a Corporação não está imune a essa deplorável situação.
6 Nesse contexto não é demasiado lembrar que o art. 13 do Regulamento Disciplinar da Polícia
Militar do Piauí define como transgressão disciplinar qualquer violação dos princípios da ética,
dos deveres e das obrigações policiais-militares. E no mesmo sentido o § 1º, art. 40 do Estatuto
dos Policiais Militares do Estado do Piauí estabelece que a violação dos preceitos da ética
tais oficiais tenham rapidamente esquecido o compromisso de honra prestado
quando do ingresso nas fileiras da Polícia Militar, em que, na presença da tropa
fazemos o solene juramento7 de regularmos nossas vidas pelos preceitos da
moral.
Também é extremamente decepcionante constatar que determinados
políticos que chegaram ao poder empunhando a bandeira da ética e da
moralidade, vergonhosamente, são os principais fiadores desse sistema.
Entretanto, para sermos justos, é preciso informar que essa prática não é
recente, existe há anos. Porém, nos últimos tempos ela foi posta em escala
industrial.
Para se ter idéia, nos últimos anos a Lei de Promoção de Oficiais
sofreu várias mutilações: ora para diminuir os interstícios em alguns postos
com o objetivo de se garantir várias promoções num curto espaço de tempo.
Ora para produzir um aberrante quadro de medalhas com o objetivo de se
fornecer uma exagerada pontuação a alguns oficiais e assim garantir-lhes
facilmente suas promoções por merecimento8. E finalmente, como golpe fatal,
eliminou-se o “inconveniente” limite quantitativo que restringia o número de
oficiais que poderiam ser promovidos por merecimento. A retirada desse
“empecilho” possibilitou que oficiais mais modernos fossem promovidos na
frente de um grande número de oficiais muito mais antigos.
A respeito dos critérios comumente utilizados para se escolher os
que serão promovidos por merecimento é imprescindível a lição de FRANK D.
McCANN9 que, embora se refira ao Exército Brasileiro nos idos de 1880,
mostra em sua narrativa um fiel retrato daquilo que se pratica hoje, em pleno
século XXI: “Idealmente, as promoções estavam associadas ao mérito, mas
policial-militar é tão mais grave quanto mais elevado for o grau hierárquico de quem a cometer.
7 Conforme prescreve o art. 32 do Estatuto dos Policiais Militares do Piauí.
8 Infelizmente, a promoção por merecimento sofreu inúmeras distorções, e longe de basear-se
no conjunto de qualidades e atributos pessoais do militar, norteia-se quase que exclusivamente
em critérios políticos, e hoje não passa de um artifício imoral utilizado para permitir que alguns
possam “furar” a fila e ascenderem rapidamente na Corporação.
9 Soldados da Pátria: História do Exército Brasileiro 1889-1937. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007, p. 29. Tradução de Laura Teixeira Motta.
muitas das vezes a influência política e o apadrinhamento de oficiais superiores
determinavam quem era os favorecidos”.
Historicamente10 nas Polícias Militares 90% das promoções por
merecimento destinam-se justamente aos que não trabalham na atividade-fim
da Corporação, mas em outras atividades privilegiadas (Gabinete Militar,
Comando-Geral, Gabinetes Político etc). Dessa triste realidade tiramos a
constatação bastante conhecida por qualquer policial militar do Brasil: quanto
mais longe da atividade-fim, mais rápida será a promoção.
O atual sistema tem produzido maléficos efeitos para a Instituição,
seus integrantes e a sociedade, dentre os quais podemos destacar: a
reprodução dessa infame prática por partes daqueles que chegam a posições
que lhe permitam beneficiar-se do poder, gerando um nefasto ciclo vicioso. O
desenvolvimento de um forte sentimento de revanchismo, ressentimento e
desunião entre os oficiais11. O esfacelamento da hierarquia e da disciplina em
virtude da ascensão meteórica de alguns em detrimento de outros muito mais
antigos. A formação de grupos de oficiais e praças que em vez de se
dedicarem à segurança pública e à profissionalização da Polícia Militar,
devotam-se exclusivamente para servir aos grupos políticos que estão no
poder com o objetivo de tirar proveito dessa ligação. E por fim, tem-se a total
desmotivação do restante da tropa, à qual cabe apenas suportar a pesadíssima
carga da segurança pública, desaguando nesta e na população o resultado de
todas as injustiças produzidas por esse sistema.
Infelizmente, aos que estão na tropa faltam-lhes reconhecimento,
promoções, medalhas, gratificações e incentivos. Todavia, sobram-lhes
cobranças, punições, riscos e sofrimento12.
10 Segundo nos ensinam o Cel RR PMESP e Ex-Secretário Nacional de Segurança Pública
JOSÉ VICENTE DA SILVA FILHO e NORMAN GALL, os quais ainda que se refiram à Polícia
Militar de São Paulo, essa realidade se aplica fielmente à Polícia Militar do Piauí e demais
polícias co-irmãs. A Polícia – Incentivos perversos e Segurança Pública. Insegurança Pública:
reflexões sobre a criminalidade e a violência urbana.Organizador: Nilson Vieira Oliveira.
São Paulo: Nova Alexandria, 2002. p. 216.
11 Nunca se viu tanto rancor entre o oficialato, podendo-se afirmar que em alguns casos esse
ódio é tão grande que se pode levar, inclusive, à ofensas físicas e morais.
12 O tradicionalismo militar, avesso ao policiamento comum, informalmente estruturou a PM em
diferentes castas, tanto mais elevadas quanto mais distante dos desconfortos do policiamento e
Além dos danosos efeitos institucionais acima descritos, temos ainda
outros igualmente perversos que se refletem nas esferas pessoal, familiar e
social. Assim, no âmbito pessoal temos um indivíduo frustrado, pois o atual
sistema lhe tolhe todas as perspectivas de realização e crescimento
profissional, causando-lhe enorme angústia e incerteza que somadas à
impotência diante de tantas injustiças lhe afligem inúmeros males no corpo e
na alma, especialmente em época de promoções. Por conseqüência, toda essa
gama de aflições transpassa o indivíduo, atingindo também à sua família,
gerando desajuste e sofrimento no seio familiar. Finalmente, na esfera social,
temos um cidadão descrente na sociedade e em suas instituições, além do
dilacerante dilema moral de se questionar a cada dia se, no mundo de hoje,
vale a pena ser honesto.
Ainda do ponto de vista social, o atual sistema fomenta a formação
de uma polícia voltada exclusivamente para servir aos interesses dos
governantes e não à sociedade. Algo que, ao menos teoricamente, é
inaceitável num Estado Democrático de Direito.
O atual sistema permite que uma minoria usurpe dos demais o
sagrado direito de ascensão na carreira, pois arrancaram deles a garantia de
um fluxo de carreira regular e equilibrado, expressamente previsto no art. 58, in
fine, do Estatuto dos Policiais Militares do Estado do Piauí.
No futuro, as novas gerações ao escreverem sobre a história da
Polícia Militar e narrarem essa página infeliz de nossa história sentirão
vergonha das imoralidades cometidas e da passividade desta geração.
Por questão de justiça, também devemos destacar que existem
honrados oficiais e praças que, mesmo estando próximo ao poder, não se
quanto mais beneficiadas por incentivos, sejam eles o conforto das instalações ou a preferência
nas promoções. (...). Num quarto e distante nível está o policiamento comum, que
verdadeiramente justifica e sustenta a instituição, local de castigo aos expulsos das castas
superiores, onde sobram riscos, pressões, punições, desconfortos e o incentivo é zero.
Apadrinhamento, apoio político ou algum talento diferenciado são passaportes para desfrutar a
carreira na primeira classe das castas superiores. Historicamente, a última casta, tratada com
os restos dos incentivos, recebe no máximo 10% das promoções por mérito. (...). Humildes
unidades e humildes níveis hierárquicos são tratados como párias e não como heróis que fazem
a verdadeira polícia. JOSÉ VICENTE DA SILVA FILHO e NORMAL GALL. Ibidem.
utilizam e nem coadunam com esse sistema imoral. E cuja explicação para tão
nobre atitude encontramos nas sóbrias palavras de ALFRED VIGNY13: “Penso
que o Destino dirige metade da vida de cada homem, e o seu caráter a outra
metade”14.
Por fim, peço ao leitor perdão pelo emprego de algumas expressões
um tanto deselegantes, porém, a culpa é desses tempos vis que não permitem
poesia. E acredito que mais ofensivas que essas expressões são as mazelas
praticadas por esse sistema, pois não ferem apenas aos ouvidos, mais também
destroem a carreira e o futuro de um grande número de oficiais e praças.
Antecipando-me às críticas e censuras que virão, deixo assentado que tenho
plena consciência de que, em épocas de inversão de valores, considera-se
errado o que denuncia e não o que pratica atos deploráveis.
Esperamos, com este artigo, alertar os oficiais e as praças sobre o
grave risco que correm o nosso futuro e a Instituição em virtude de nossa
vergonhosa passividade. Igualmente buscamos dá conhecimento às
autoridades e à sociedade sobre a insustentável situação em que se encontra a
Polícia Militar, e assim, tentarmos juntos fazer frente a esse sistema que vem,
ao longo dos anos, contribuindo significativamente para o esfacelamento moral
da Corporação. E por fim, possibilitar aos partidários da “nova ética” uma
profunda reflexão sobre o grande mal que estão causando à Instituição, aos
demais companheiros de farda e, principalmente, à sociedade piauiense, à qual
juraram servir e proteger.
Assim, para mudarmos esse triste quadro é preciso urgentemente
criar uma nova e moderna Lei de Promoção de Oficiais e Praças que garanta a
todos um efetivo fluxo regular de carreira e a profissionalização da Polícia
Militar, em que o constante aprimoramento e a qualificação do militar de polícia
sejam os principais mecanismos de ascensão e crescimento na carreira. Dessa
13 Servidão e grandeza militares. São Paulo: Difusão européia do livro: 1967, p. 5. Tradução
de Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
14 Devemos ter em mente que se Deus nos possibilita oportunidades na vida e nos permite
alcançarmos certas posições na sociedade, devemos utilizar essas oportunidades para o bem,
para ajudar pessoas e construir um mundo melhor, e não apenas beneficiar-se e prejudicar os
demais. Lembremos: o que Deus nos dá, Deus também pode nos tirar.
forma, ganhariam a Instituição, seus integrantes e, principalmente, a
sociedade.
terça-feira, 22 de junho de 2010
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